Clara não via a hora do ônibus sair da rodoviária. Foram horas intermináveis de uma viagem que parecia não ter fim. De casa para o aeroporto, 1 hora e meia. O trânsito estava complicado. No aeroporto, entre check-in e decolagem, outras 3 horas. A viagem até São Paulo durou 8 horas e ela ainda tinha que aguentar 3 horas mais de ônibus até chegar à sua cidade natal.
Finalmente o ônibus saiu. Um alívio. No caminho ela pensava em como encontraria seu avô, Alfredo e sua avó Tosca. Não os via desde que seus pais decidiram deixar o país em busca de uma nova oportunidade, que acabou não lhe trazendo muitas experiências boas. Clara tinha apenas 8 anos. Porém não deixou de pensar nos avós um único dia durante 20 anos. Eram certamente os avós mais queridos do mundo!
Começou a imaginar como encontraria a casa onde nasceu e morou até o dia da partida. Naquela época, seus avós moravam nos fundos, numa “meia água”. Fechou os olhos e começou a lembrar da rua onde morava, da sua casa e do corredor que dava para a casa dos avós para onde ela sempre fugia quando a mãe ameaçava lhe dar umas palmadas por alguma travessura.
Lembrou do cheiro gostoso de cera de assoalho que a avó passava no chão aos sábados (era o dia da faxina) e como a casa ficava cheirosa. Dona Tosca, muito caprichosa, passava o escovão pra “puxar o brilho”. Lembrou do avô, entrando pela cozinha com os chinelos sujos de lama, todo contente com a bacia cheia de goiabas que catou no pé pra D. Tosca fazer a compota preferida da neta. Lembrou do cheirinho gostoso de Colônia Seiva de Alfazema que ambos usavam. Na verdade, a avó “tomava banho de perfume”, como dizia sua mãe.
Clara chamava essas lembranças de “Os 3 cheiros da saudade”. A cera, a goiaba e a colônia sempre tiveram o poder fascinante de lhe puxar pela mão numa viagem vertiginosa em direção ao passado. Ela sempre se preocupou em não perder essas 3 referências. Seus pensamentos tinham cheiro e isso era mágico! Mas ela não era feliz, não usava o seu talento nato em busca de uma oportunidade profissional adequada e nem se deixou levar pela felicidade prometida por um noivo que acabou desistindo de leva-la ao altar. Era como se não quisesse que o tempo passasse ou tivesse medo de enfrentar novos desafios.
A chegada na cidade foi emocionante! Clara conversou muito sobre suas experiências durante o tempo em que viveu no exterior. Ficou encantada ao ver como os avós tinham mudado fisicamente e como estavam ainda mais adoráveis com seus cabelos grisalhos. Entretanto, percebeu que a casa já não mais exalava aquele cheiro gostoso de cera de assoalho. D. Tosca explicou que resolveram aplicar “sinteco” porque era mais fácil de limpar e conservar. A goiabeira já não existia e Seu Alfredo contou que agora comprava goiaba em calda enlatada no supermercado porque a goiabeira estava dando bicho. Ambos já não usavam aquela colônia. Disseram que era porque ficaram com alergia a qualquer tipo de perfume.
Num primeiro momento, Clara ficou desapontada mas disfarçou. Afinal, os avós estavam vivos, e isso era o que importava. Pouco a pouco ela se deu conta de que durante todos aqueles anos, ela havia esperado por um momento que jamais aconteceria. Mesmo que a avó continuasse encerando o chão, que o avô continuasse colhendo goiabas e os dois ainda estivessem usando a mesma colônia de sempre, nada seria como antes.
Naquela noite ela se retirou mais cedo para dormir. Afinal, D. Tosca tinha lhe prometido um café da manhã maravilhoso seguido de um passeio a cavalo com o avô pelas redondezas e ela precisava acordar cedo. Decidiu meditar antes que o sono a vencesse. Lembrou pela última vez daquelas cenas recorrentes e seus 3 cheiros da saudade. Imediatamente entrou na linha do tempo e encontrou aquela menina de 8 anos. Foram minutos intensos de muita emoção e acordos entre as duas, porém sem ressentimentos. Ela sabia que aquela menina, ao lhe trazer todas aquelas lembranças anos a fio, só queria que ela se sentisse feliz. Ao final, agradeceu a menina pela intenção positiva e propôs que daquele minuto em diante viveria apenas o presente, dedicando cada minuto da sua vida ao seu objetivo prioritário: se fazer feliz!
Ela aprendeu que as emoções do passado, positivas ou não, devem ficar lá onde estão: no passado e devem ser usadas apenas como referência numa etapa qualquer do aprendizado. Ela aprendeu que é humanamente impossível reproduzir uma emoção, por melhor que ela seja, no minuto seguinte. Porque cada minuto é uma experiência única. Clara adormeceu para acordar como uma nova mulher. A menina se foi, feliz com o acordo celebrado.