O Avião a Jato Invisível da minha família

by | Jun 25, 2020 | Histórias

Semana passada, conversando com a família sobre as comemorações do “Juneteenth ou 19 de Junho, ressaltadas pelos últimos acontecimentos que resultaram em mais uma vítima da brutalidade racial, muitas das quais registradas aqui comoI can’t breathe ou Eu não consigo respirar e  as diversas diversas sobre Racismo histórico vs Racismo atual, lembrei de um artigo que minha filha postou em 2017.   O artigo definia (e ainda define) um estado de coisas tão comum na sociedade em que vivemos.

Conversávamos também  sobre como as pessoas, por não nos conhecerem a fundo, ainda hoje fazem comentários que não fariam se soubessem das nossas raízes, já que a cor da nossa pele não define nossas origens. É claro que nossos amigos íntimos o sabem, mas não vivemos o tempo todo falando sobre isso, principalmente para estranhos.

Mas sempre que aparece uma oportunidade, confesso que gosto quando surpreendo alguém que demonstra impaciência com a  tendência crescente de pessoas que aderiram ao movimento “BLM” – por uma sociedade mais igualitária – mas que alguns chamam com certa irritação de “politicamente chato”.

Achei que deveria seguir o conselho da minha amiga, Elizabeth Luvith, e compartilhar essa história, cujo original pode ser lido aqui, mas achei mais fácil fazer uma tradução livre pra facilitar a leitura de quem não domina o inglês e trazê-lo para o meu blog.  Eis portanto, o texto de Fernanda Foertter:

Mulher Maravilha: meu jato invisível

Eu me identifico muito com a Mulher Maravilha. Sou brasileira, ela é amazônica. Ela usa um avião invisível que voa silenciosamente e portanto não pode ser detectado por forças hostis, evitando conflitos desagradáveis. Eu também. Deixe-me explicar.

Esta é Maria, minha tia-avó. Me disseram que ela tinha mais de 100 anos quando essa foto foi tirada por volta dos anos 70.

My great-aunt Maria. Photo credit André Telles

Seu irmão muito elegante, Nestor, aparece abaixo, por volta dos anos 1920:

Estes são meus bisavós. Enquanto escrevo este texto, não me lembro bem do nome dela (*)… mas nossa família fez piada ao longo dos anos sobre nossos problemas dentários terem sido herdados dela. Aqui eles estão juntos apenas três décadas após o fim da escravidão no Brasil (1888). Maria, sua irmã mais velha, me disseram que nasceu escrava, mas que ele escapou daquele destino.

Eles tiveram minha avó, Emilia.

My grandmother Emilia

Ela ainda está viva e tem mais de 90 anos (a longevidade parece estar na família). Costureira, esse lindo rosto chamou a atenção de um certo soldado de olhos azuis que mais tarde virou caminhoneiro, Alfredo.

Seu avô, Ferdinand, havia migrado da Alemanha na época em que a escravidão terminava, para substituir o trabalho escravo gratuito nos campos pelo trabalho imigrante barato.

Enfim Emilia e Alfredo deram à luz à minha mãe, Vera

Aqui ostentando um Afro muito legal, que causava muita agitação naquela época. Das muitas histórias de cabelo, tenho essa que, quando ela visitava a África do Sul no início dos anos 80 durante o apartheid, ela foi convidada, agressivamente, a se separar de seu grupo no aeroporto e embarcar no “outro ônibus”. Seus colegas de trabalho brancos se recusaram a permitir. Mas, ela me disse, “o evento foi tão chocante que eu não saí do meu quarto de hotel e perdi a feira”.

Alguns anos antes, minha mãe chamou a atenção de um belo homem ameríndio (povos nativos da América do Sul) … um programador de computadores!

E eles tiveram uma bebê que herdou os cachos de sua mãe subjugados pelos cabelos escuros e lisos do pai, sobrancelhas grossas … e uma dose dupla de genes de programação de computador. (Mamãe era mestre em macros DB na época)

E de alguma forma a genética me deu uma pele muito clara: meu jato invisível.

Meu jato invisível me deu a capacidade de poder ouvir o que de outra forma poderia ser dito apenas em “companhia educada”. Estas são citações reais que ouvi de pessoas:

  • “Ela está aqui só para cumprir uma cota, você sabe …”, em referência a uma estudante negra.
  • “Eles matam mais por si mesmos do que a polícia” ouvi isso em um dos meus locais de trabalho.
  • Referências à proporção de crianças brancas / não brancas nas escolas, como exemplo de segurança.
  • Referências à juventude “urbana” como um estereótipo pejorativo.
  • Zombando sotaques com movimentos e discurso exagerados de “hip hop” vindas de um ex-policial
  • Declarações de que o racismo “existe de ambos os lados” de democratas progressistas.

Meu jato invisível me permitiu escapar de qualquer discriminação relacionada à raça. Ou pelo menos qualquer um que eu pudesse perceber.

E quando você se casa com alguém de ascendência européia e sua filha acaba saindo assim,

as pessoas assumem que você talvez seja apenas um tipo diferente de europeu … você sabe … “provavelmente italiano?”

Fernanda … De onde é esse nome, é italiano?

Portanto, da escravidão aos relacionamentos inter-raciais proibidos de meus bisavós e avós, aos ônibus do apartheid, aos comentários casuais e outras injustiças raciais institucionais sofridas pelas gerações anteriores, nossa família ainda não escapou das consequências das desigualdades raciais.

Mas minhas filhas estão mais distantes deles do que qualquer outro jamais esteve em minha família. Não espero que minhas  bebês ruivas sofram discriminação racial durante a vida. E a parte mais triste é que a libertação delas da discriminação racial não se deve ao progresso social ao longo do tempo, mas a pequenas variações genéticas ao longo de quatro curtas gerações que apagaram seu fenótipo afro-descendente externo. Em resumo: sumiram os cachos e a melanina. E, curiosamente, também os efeitos do racismo.

Meu jato invisível me permite espiar dentro das mentes de pessoas que desconhecem a história da minha família e que, de outra forma, teriam me colocado na categoria “outro”. Por isso, acredito que nosso estado atual está sofrendo não apenas com forças institucionais ou mesmo com preconceitos inconscientes. Ainda vivemos num estado consciente de ódio.

Colocando essa conclusão em contexto: o episódio de Charlottesville não trouxe apenas “algumas maçãs podres”. Ela trouxe algumas maçãs barulhentas, a ponta do iceberg sobre o ódio, e eu temo que tenhamos muito mais iceberg de ódio para derreter até que possamos considerar o racismo como removido da nossa nação.

(*) O nome da bisavó que ela não lembrava era Vitória, de origem Portuguesa.

[et_pb_ccfcm_facebook_comments_module ccfcm_sort_comments_by=”reverse_time” ccfcm_app_id=”1108387636023204″ _builder_version=”4.4.2″][/et_pb_ccfcm_facebook_comments_module]